Dia 23, mais uma vez, como vem sendo hábito neste perfeito Inverno de escaladores, eu e o Nuno fomos ao Espinhaço passar um dia solitário entre entaladores e amigos.
Uma das coisas boas da escalada clássica, pelo menos para nós que nunca nos deixamos de sentir meio-principiantes, é que damos menos pelos altos e baixos da nossa forma física. Na escalada desportiva quase sempre estamos presos ao “estado do dia”, a essa tirania da “forma”, está-se fraco ou forte e isso condiciona decisivamente o dia e por arrastamento as nossas hipotéticas alegrias. Mas na clássica não, a “forma” é relegada para segundo plano e a motivação toma as rédeas do dia. Ao contrário, esta é uma das razões porque a escalada desportiva muitas vezes me desaponta, porque chego à falésia capaz (na minha imaginação e motivação) de engolir as vias todas e depois arrasto-me pelas vias onde devia aquecer. Esta opressão, da verdade clássica invertida “molem agitat mens”, é um dos aspectos mais negativos e mais difícil de combater na escalada desportiva.
Nesse dia a parede estava perfeita debaixo de um céu aberto. O nosso objectivo já o traziamos definido de véspera. Entrar pela Tomatada (na verdade é a Transatlântica), fazer os três primeiros largos e abrir uma saída nova, passando por uma fissura à esquerda do largo difícil da Tomatada. No fundo o dia centrava-se naquela fissura a meio da parede.
Abrir essa fissura era um dos meus projectos pendentes “um dia tem que ser”. Desses projectos que todos temos a remoer-nos o subconsciente desde que pela primeira vez o trazemos para dentro da cabeça. E dia 23 foi o dia dessa fissura.
Assim, lá nos postámos debaixo dela, sob um sol bem quente. E dez amigos e três entaladores depois, conquistámos essa fissura que é a nova maravilha desse mundo antigo que é o Espinhaço. Cavalgámos por ela, atirou-nos ao chão, voltámos à carga e saímos vitoriosos.
Dizer que essa fissura é excelente e estética é ainda pouco... Tenho para mim que quem escala e abre vias anda à procura de qualquer coisa e este “andar à procura” faz parte da minha definição de escalada. E o que de melhor posso dizer desta via é que encontrei nela um traço dessa indefinida, incerta coisa que se procura, como um pedaço de luz para um descontentamento de sombras. Sim, eu bem sei que aparentemente não passa de mais uma fenda de apenas 15 m numa parede qualquer, mas os maiores tesouros têm aparências simples.
Na altura pareceu-nos inevitável que teriamos que colocar uma plaquete no início da fissura, pois as protecções são... algo difíceis de colocar e a queda é limpinha... numa plataforma. No entanto, se na altura a ideia não me agradou, agora é-me insuportável como a ideia de espetar um piton entre duas costelas! E ainda bem que não tinhamos nenhum furador à mão porque a oportunidade faz o criminoso. É que a linha é perfeita e o ferro ali sobressairia como uma aberração ou uma violação. Como uma monstruosa exibição de uma fraqueza assumida, o medo das nossas entranhas transmutado em metal e escancarado ao mundo! É engraçado como evolui num escalador a maneira de encarar as plaquetes na escalada clássica. Ao princípio, quando encontramos uma plaquete numa via, ficamos contentes e aliviados e vêmo-las como bóias salva-vidas. Depois, quando começamos a tratar os amigos por tu, ao encontramos uma plaquete ficamos tristes e desapontados e vêmo-las como grilhetas das nossas sensações de liberdade.
Para terminar a via, em contraste com esse largo de fissura extraprumada, saímos por um largo de muito fácil protecção que fica como um dos melhores do Espinhaço. E já lá em cima, à noite e à conversa com a outra cordada do dia, o Mário pergunta pelo nome da nova via.
Uma das coisas boas da escalada clássica, pelo menos para nós que nunca nos deixamos de sentir meio-principiantes, é que damos menos pelos altos e baixos da nossa forma física. Na escalada desportiva quase sempre estamos presos ao “estado do dia”, a essa tirania da “forma”, está-se fraco ou forte e isso condiciona decisivamente o dia e por arrastamento as nossas hipotéticas alegrias. Mas na clássica não, a “forma” é relegada para segundo plano e a motivação toma as rédeas do dia. Ao contrário, esta é uma das razões porque a escalada desportiva muitas vezes me desaponta, porque chego à falésia capaz (na minha imaginação e motivação) de engolir as vias todas e depois arrasto-me pelas vias onde devia aquecer. Esta opressão, da verdade clássica invertida “molem agitat mens”, é um dos aspectos mais negativos e mais difícil de combater na escalada desportiva.
Nesse dia a parede estava perfeita debaixo de um céu aberto. O nosso objectivo já o traziamos definido de véspera. Entrar pela Tomatada (na verdade é a Transatlântica), fazer os três primeiros largos e abrir uma saída nova, passando por uma fissura à esquerda do largo difícil da Tomatada. No fundo o dia centrava-se naquela fissura a meio da parede.
Abrir essa fissura era um dos meus projectos pendentes “um dia tem que ser”. Desses projectos que todos temos a remoer-nos o subconsciente desde que pela primeira vez o trazemos para dentro da cabeça. E dia 23 foi o dia dessa fissura.
Assim, lá nos postámos debaixo dela, sob um sol bem quente. E dez amigos e três entaladores depois, conquistámos essa fissura que é a nova maravilha desse mundo antigo que é o Espinhaço. Cavalgámos por ela, atirou-nos ao chão, voltámos à carga e saímos vitoriosos.
Dizer que essa fissura é excelente e estética é ainda pouco... Tenho para mim que quem escala e abre vias anda à procura de qualquer coisa e este “andar à procura” faz parte da minha definição de escalada. E o que de melhor posso dizer desta via é que encontrei nela um traço dessa indefinida, incerta coisa que se procura, como um pedaço de luz para um descontentamento de sombras. Sim, eu bem sei que aparentemente não passa de mais uma fenda de apenas 15 m numa parede qualquer, mas os maiores tesouros têm aparências simples.
Na altura pareceu-nos inevitável que teriamos que colocar uma plaquete no início da fissura, pois as protecções são... algo difíceis de colocar e a queda é limpinha... numa plataforma. No entanto, se na altura a ideia não me agradou, agora é-me insuportável como a ideia de espetar um piton entre duas costelas! E ainda bem que não tinhamos nenhum furador à mão porque a oportunidade faz o criminoso. É que a linha é perfeita e o ferro ali sobressairia como uma aberração ou uma violação. Como uma monstruosa exibição de uma fraqueza assumida, o medo das nossas entranhas transmutado em metal e escancarado ao mundo! É engraçado como evolui num escalador a maneira de encarar as plaquetes na escalada clássica. Ao princípio, quando encontramos uma plaquete numa via, ficamos contentes e aliviados e vêmo-las como bóias salva-vidas. Depois, quando começamos a tratar os amigos por tu, ao encontramos uma plaquete ficamos tristes e desapontados e vêmo-las como grilhetas das nossas sensações de liberdade.
Para terminar a via, em contraste com esse largo de fissura extraprumada, saímos por um largo de muito fácil protecção que fica como um dos melhores do Espinhaço. E já lá em cima, à noite e à conversa com a outra cordada do dia, o Mário pergunta pelo nome da nova via.
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...- Cavalgar o Tigre – disse eu. E o Nuno atira as mãos à cabeça.
...- Que raio de nome é esse!?...
...- Cavalgar o Tigre – disse eu. E o Nuno atira as mãos à cabeça.
...- Que raio de nome é esse!?...
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4 comentários:
Só espero chegar a esse estádio evolutivo em que as plaquetes "encomodam".Ainda tenho de palmilhar muita rocha. Mais um grande relato, venha lá a parte dois.
RicardoC
É pena ter sido preciso um acontecimento trágico, para se deixarem de tosquiar cordeirinhos e começarem a domar as bestas.
FA
Dizes bem, "começarem a domar as bestas", porque foi apenas uma primeira montada para ver como reagiam os bichos. Ela agora está de sobreaviso e parece-me que o rodeo vai aquecer. Haja amigos de ferro e osso para lá ir!
Muito bem! Parabéns!
Paulo Roxo
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