terça-feira, setembro 04, 2007

Assim falava Zarathoustra (em Ordesa)

(texto só para clássicos sem futuro)
No fim de Julho, quando já me tinha decidido a ficar este Verão por Portugal, abandonando a ideia de ir na rocktrip fanática que estava prestes a partir, com o Leo, a Isabel e o Mário, encontro o Francisco no messenger. A conversa, mais coisa menos coisa, correu assim:
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...FCS: ‘tou um bocado farto de Rodellar. Acho que fico por cá. Aproveito para ir à Serra e a Sagres.
...FA: Mas olha, afinal sempre vou ter uma semana livre de 7 a 12. Podemos ir a outros sítios.
...FA: S.Martin, Bielsa, Ordesa...
...FCS: Isso já me convence.
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Logo ali ficou assente o plano geral das férias de escalada. Novos ambientes e uma via de parede num local mítico – Ordesa. Até aí, Ordesa era apenas um nome que eu trazia arrumado na memória. Fazia-me lembrar um filme espanhol de escalada artificial que eu vira muitos anos atrás. Tinha uma ideia vaga de enormes paredes de cor escura, tectos impressionantes e escaladores atulhados de material pendurados em estribos. Mas Ordesa para mim também me evocava Nietzsche e o seu livro “Assim falava Zarathoustra” por causa de uma via com esse nome e que aparecia nesse filme. E Nietzsche recordava-me as palavras duras de Zarathoustra, por vezes sombrias e por vezes cristalinas, como o são as coisas próprias das montanhas:
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“Sigam os caminhos que são os vossos. E deixem os povos e as nações seguir os seus – sombrios caminhos na verdade, sobre os quais não brilha uma única esperança. Deixem reinar os comerciantes lá onde já nada brilha senão o ouro dos comerciantes. Os tempos dos reis já passaram; o que nos nossos dias leva o nome de povo não merece reis.”
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“Ó meus irmãos, serei eu então cruel? Mas eu digo-vos: o que cai é preciso ainda empurrá-lo. Tudo o que é de hoje cai e decompõe-se: quem quererá sustentá-lo? Mas eu, eu quero ainda empurrá-lo!”
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Mas de Zarathoustra recordo sobretudo esta sublime passagem que o Rui Pimentel tinha descoberto, escrito num qualquer refúgio de montanha e que eu só mais tarde redescobriria: “Quem de entre vós pode rir e aprender ao mesmo tempo? Aquele que escala as mais altas montanhas ri-se de tudo o que é sério e do teatro da vida.”
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Mas desçamos à terra. A conversa continuava no messenger, nesse encurtador de distâncias, acelerador de combinações, útil e prático, mas também por isso, arrasador de mistérios e desafios (ou alguém duvida que a técnica tornou o Everest mais pequeno?).
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FCS: Que vamos fazer em Ordesa?
FA: Uma via que um amigo me recomendou.
FCS: Como se chama?
FA: RACS. Parece que é uma das melhores.
FCS: É dura?
FA: 7a +++
FCS: +++? Lol!
FA: Mando-te o croqui.
FCS: OK, vou ver.
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Abri o ficheiro para ver a descrição da via. Os croquis das vias grandes são como mapas de viagens. Analisar esses mapas escritos em código, só por si, já é um pequeno entretém e uma pequena aventura. Um caminho sinuoso marcado a tracejado vai percorrendo obstáculos só em parte assinalados e nós vamos tentando sempre ler nas entrelinhas dos símbolos, para adivinhar o que não lá está e o que nos espera. Vejamos, 400 m (afinal seriam apenas uns 300 m), muito desequipada (5 ou 6 pitons e algumas reuniões com buris), difícil, bonita, exposta em 6b/c, duração de 8 a 11 horas... No messenger, passado uns instantes, perguntava o Francisco:
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FA: Motiva-te?
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Era a pergunta chave, que faz a diferença entre ir à praia ou subir uma montanha. Quando os hipotéticos sonhos e projectos se tornam numa realidade próxima, sofremos uma pequena descarga de adrenalina e somos obrigados a enfrentar o desafio nos olhos. Nesse momento, percebemos claramente o que ele significa para nós e não é possível enganarmo-nos. Torna-se-nos claro como água se o queremos ou não.
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FCS: Claro!
FA: Óptimo! É excelente que venhas!
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Depois desta introdução, claro que todos estariam à espera da descrição de como correu a via e das fotos dessa parede e desse vale de uma beleza realmente impressionante. No entanto, não levámos máquina e não tirámos fotos. Quanto à descrição da via... correu bem, é excelente e recomendo-a.
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Desapontados? Que queriam? Lirismo, sangue, descrições heróicas de lançamentos para “televisores” em equilíbrio em cima de “frigoríficos”?... Está bem, eu alongo-me um pouco mais.
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Sexta-feira, 10 de Agosto. Acordámos em Torla às 5.30 h da manhã e tomámos o pequeno-almoço sem vontade e à força, para apanhar a camioneta das 6h e que nos levaria para o interior do Parque Natural. Para espanto meu, acordei sem custo e senti-me bem desperto. Era noite cerrada e fazia frio. Pegámos nas pequenas mochilas que tinham apenas o indispensável: material, comida e água. Cada um escalaria com a sua. Depois de meia-hora a camioneta deixou-nos em “La pradera” no vale por baixo das paredes de Ordesa. Continuava noite cerrada e fazia mais frio. Enquanto tentávamos orientar-nos passaram por nós dois escaladores respeitáveis, quer dizer, para cima dos quarenta. Depois de uma curta conversa, “blabla... escalar?... Racs!?... Sim... blabla... Pared de la Cascada?... Ok, sigam nosotros”. O caminho de aproximação fazia-se muito bem, pois apesar do grande desnível até à base da parede, era pouco íngreme. Eu e o Francisco tagarelávamos e ríamos como duas espanholas e se a caminhada durou uma hora nós falámos por uns cinquenta minutos (mais tarde o Miguel Grilo encontrou um texto na net com a impressão que causámos a um deles). O bosque que atravessávamos ia ganhando contornos à medida que amanhecia e as árvores iam-se revelando magníficas e majestosas à nossa volta. Depois de nos despedirmos dos dois simpáticos escaladores – Jesús e Ignacio – numa bifurcação do caminho, chegámos à base da parede, sem quase dar por isso, de tal maneira íamos distraídos. Apesar de ter a t-shirt encharcada de suor da caminhada, estranhei não estar cansado e ocorreu-me a piada que me fartava de ouvir “Estou cada vez mais forte em altitude!”. Pusemo-nos à procura do início da via, p’rá esquerda, p’rá direita, torcemos o pescoço e lá adivinhámos uma possível reunião por cima de uns tectos. Mas e o início da via? Faltava o raio da pedrinha na base da via. Na verdade não havia início da via, nem sequer havia via, havia só, talvez, uma reunião lá em cima. Liberdade era isto, vai por onde queres. No dia anterior, à beira de um rio que devia ser um dos quatro do paraíso, tínhamos tirado à sorte quem começaria a via. Papel, tesoura ou pedra. O Francisco partiu-me a tesoura e ficou com os largos ímpares. Eu na altura julgava que isso me tinha deixado os largos mais... tranquilos, mas afinal...
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E pronto foi assim. A via correu bem e recomendo-a!
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Acreditem, nada mais há a contar... Ou melhor, haveria, mas as descrições dos movimentos são tão monótonas e as sensações da escalada tão difíceis de traduzir. E na verdade, não quero ficar muito aquém das recordações que a via me deixou, para não correr o risco daquele homem que para descobrir a essência da beleza despedaçou a borboleta. Assim, deixo a minha memória esvoaçar intacta e perfeita.
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Quanto às fotografias nada a fazer. Apenas arranjei uma que pilhei lá no sítio onde escreve o Jesús. De resto, que acrescentariam as fotografias? Para mim são como invólucros vazios. Que me perdoem os aficionados, mas poderia uma fotografia descrever-me a beleza daquele vale, o silêncio entrecortado pelo vento, a intensidade do compromisso da via, a descontracção de uma boa reunião numa bela plataforma, o ácido láctico a levantar os braços enquanto não se encontra nem friend nem entalador que sirva na fissura? Ah, o que uma fotografia não revela face à pálida imagem que mostra! O destrepar apressado, as contas feitas ao material que se leva na cintura, as distâncias friamente avaliadas entre o medo e a objectividade, a trajectória da hipotética queda por entre um diedro e a plataforma abaixo dos pés, a distribuição do peso do corpo pelo “frigorífico” que treme, mas também os bons momentos, a coragem e a tranquilidade contagiantes, o entalador que entra “à bomba”, a presa gigante e salvadora que revigora os braços cansados, o piton surpresa quando já nada entrava há uns metros, os buris da reunião a surgirem-nos finalmente e a dizerem “Descanso!”, o sabor da água e de um pedaço de pão lá onde já nada resta...
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Ops! Parece que me alonguei mais do que tencionava. Já agora termino.
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E no cimo o planalto verde só com o céu por cima. A alegria de um inteiro esforço concluído. A satisfação enorme das pequenas coisas, tirar os nós e o arnês, estar descalço na erva e apreciar, quase pela primeira vez, a paisagem grandiosa. E por fim, a sensação de que “amanhã não faria isto outra vez”, sim, amanhã não, mas talvez depois de amanhã...
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..................Pared de la Cascada (foto roubada em www.inazio.com)

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Nota: A tradução sofrível dos textos de Nietzsche é minha, do livro: "Ainsi parlait Zarathoustra".

4 comentários:

Miguel Grillo disse...

Já há alguns dias que esperava ansiosamente por este post, desde o dia em que também pelo Messenger havia tomado conhecimento desta vossa aventura por terras desse encantado vale.

De facto este é um texto apenas para escaladores “clássicos sem futuro” pois os outros dificilmente entenderão tudo aquilo significa escalar em Ordesa ou em qualquer outro selvagem e livre lugar.

Quanto à RACS, fama de exigente não lhe falta, apenas ao nível de grandes e fortes escaladores como ambos vós o são.
Mas, também Nietzsche disse que “O segredo para adquirir as mais férteis experiências e os maiores prazeres da vida, é viver perigosamente”…. e escalar em Ordesa tem sempre uma dose de compromisso.

Agora, as fotos, essas é que não têm perdão. Sem dúvida que para quem nunca passou por experiências semelhantes, quem nunca tocou na rocha de Ordesa ou tampouco sentiu a boca seca tanto de tantas horas de escalada como de tantas fracções de medo, poderá ver para além da imagem como tão bem referes. Mas para todos aqueles que por ali passam ver uma foto, uma imagem de um qualquer momento ali, será compreendido com certeza em toda a sua magnitude e com a mesma boca seca. Seria a cereja em cima do bolo, seria o culminar deste maravilhoso texto.

Parabéns!!!

FCS disse...

Sem dúvida Miguel. E podes ter a certeza que eu sou quem mais lamenta não ter algumas fotografias dessa subida. Pois eu saberia completá-las com o que elas não revelam.

Anónimo disse...

Yo!!

Grandes vias!

Grandes dias!

Boas aventuras.

Abraço.

Paulo Roxo

Anónimo disse...

Ainda bem que vocês publicam as vossas aventuras, que são uma grande mais valia para alargar os "horizontes" de quem não conhece esses lugares e quiça despertar o "bichinho" para outro tipo de escalada, sem dúvida mais intensa.
RicardoC