quarta-feira, maio 16, 2007

Das viagens, das montanhas e do que se procura

......Um dia, um viajante incansável e insaciável, escalador de pedras e montanhas e observador de povos e culturas, encontrou um velho homem que vivia num perdido refúgio de montanha. Este, como fazia sempre com quem raramente por ali passava, convidou-o a sentar-se para beber um chá e partilhar do seu cachimbo. À primeira vista, o velho homem parecera-lhe um desses seres miseráveis, esquecidos pelo mundo e por todos. Contudo, à medida que melhor o observava, enquanto ia bebendo aquele chá de ervas desconhecidas, apercebeu-se do seu erro. Não, não se tratava de um qualquer pobre velho andrajoso. Os seus gestos e a sua voz calma tinham qualquer coisa de uma nobre dignidade, mas, ao mesmo tempo, de uma simplicidade desarmante. Acima de tudo, espantava-o a absoluta tranquilidade que aquele velho deixava transparecer e, por um momento, sentiu-se desconfortável na sua pele e muito insignificante. Mas, rapidamente, transformou esse desconforto em curiosidade por aquele estranho. Por fim, à luz magnífica daquele entardecer, o viajante encorajou-se a perguntar-lhe que história era a sua, de onde vinha e o que fazia ali sozinho naquelas montanhas. Então, o velho homem, sabendo já que tinha na sua frente um escalador de montanhas, falou-lhe mais ou menos assim:

......- Porque estava cansado de sempre me subir pela via normal, das vistas e recantos conhecidos, dos ritmos compassados e habituais, nasceu-me a ideia de me conquistar a face Norte do coração. Logo, caiu-me em cima uma tormenta de interrogações. Que material iria precisar? Em que estação subiria? Por onde faria a aproximação? E a minha vida passei-a então a responder a estas questões, a preparar essa subida e depois a subi-la.

Apesar de meio perplexo e de não compreender verdadeiramente aquelas palavras, o viajante sentiu-se animado a confessar-lhe uma inquietação, que por vezes, nalguma noite de inesperada introspecção, o assaltava e lhe dava a impressão de um espinho cravado em qualquer parte de si próprio.

......- Pois eu dei três voltas ao mundo e subi mil everestes e ainda não vi nem encontrei o que procuro, que não sei bem o que é...

Mas o velho homem parecia que não o ouvia. A sua figura muda assemelhava-se a uma velha montanha, com um corpo gasto e açoitado pelas tempestades de uma vida rude, fazendo parecer um mistério como se aguentava de pé. Pois era magro como as árvores mais nuas daquelas encostas rochosas. Era um ser reduzido à sua essência mais simples. A sua face espelhava a paisagem, sulcada de rugas como de ravinas as vertentes daqueles montes. E os seus cabelos brancos eram como tufos de arbustos secos crescendo em desalinho pelos planaltos. Mas era o olhar que desvendava todo o segredo da força que o movia. Um olhar profundo e vivo, com um brilho que fazia lembrar o sol reflectido na neve dos cumes, quando já toda a montanha está coberta de sombras. Olhando para o viajante, como se desse finalmente pela sua presença, disse-lhe:

......- Viajar é andar distraído.

Ao ouvir isto ficou petrificado. Aquela frase caía-lhe em cima como uma pedra. E num segundo parecia que envelhecia e que lhe roubavam todos os anos que tinha passado a correr mundo. Mas o velho homem, interrompendo os seus pensamentos, prosseguiu:

......- Se tivesses dado três voltas a ti próprio e subido mil vezes o teu coração, a esta hora já saberias melhor do que eu o que procuras...

E o velho homem permaneceu com a sua expressão serena como o entardecer. E a noite ia caindo silenciosa.

5 comentários:

Miguel Grillo disse...

Não sei o que dizer!

Apenas talvez: "Ao ler isto fiquei petrificado. Este texto caíu-me em cima como uma pedra. E num segundo parece que envelheci e que me roubam todos os anos..."

Um dos melhores textos, senão mesmo o melhor, pela blogosfera vertical.

Profundo, pleno de sentimento, simples, único...como o Filipe nos tem habituado! Parabéns!!!

Um grande momento entre geniais momentos. Obrigado!!!

Miguel

Anónimo disse...

Um dia, depois de terminada a licenciatura, decidi fazer uma “viagem interior" pela Europa (2 meses). Pensei: não existe melhor altura para uma verdadeira introspecção do que esta viagem solitária. Não sei bem como, mas passei o tempo completamente “distraído” sem necessidade/capacidade para o fazer. Deposito agora a minha esperança no período da minha reforma. :-))

Estes textos oxigenam uma esperada apneia de reflexão

R.

FCS disse...

Bom, eu acho que o velho exagerou! As viagens podem ser algo mais que uma distracção, podem ser uma peregrinação. Mas de facto quase nunca o são.
E a seguir àquela frase o velho esqueceu-se de dizer isto: " e para encontrar é preciso estar concentrado".
Abcs

Miguel Grillo disse...

Creio que por vezes, a viagem é o condimento da peregrinação que nos levará a escalar a Face norte do nosso coração, ou a busca daquilo que procuramos ou mesmo daquilo que somos. A viagem pode apenas significar o trajecto para atingir uma zona, um local, uma montanha na qual sabemos que encontraremos algo de nós proprios, preenchemos algo daquilo que queremos, crescemos na nossa interioridade. Ou pode simplesmente ser ela própria (a viagem) um fim para esse enriquecimento, essa procura que tanto buscamos. Melhor ainda, é quando ambas as coisas se conjugam! E sobretudo quando, de uma forma ou de outra, faz parte intrínseca das "três voltas a nós proprios e das mil subidas ao nosso coração". Como é bom andar "concentradamente" distraido!!!

Anónimo disse...

sem dúvida!
por isso mesmo é importante unir a viagem física (corpo) à viagem espiritual (mente)
um

esse é o caminho
=)

paz
jandiro