Quando vi o convite do grande Chef para contar a história da “Directa dos Chorões”, um arrepio percorreu-me a espinha. Pus-me a recordar esse prato de terra e chorões e o meu dedo grande do pé começou a tremer. Hesitei, é um prato forte e a receita foi improvisada na altura. Serei capaz de a reconstituir? Trata-se de uma receita demorada e arrisco-me a cansar os mais pacientes leitores e os impacientes aprendizes de cozinheiro. Bom, aventuro-me, mas desde já aviso que não nos responsabilizamos por quaisquer futuros incidentes culinários. Esta é daquelas receitas que costuma passar com uma legenda por baixo: “não faça isto na sua cozinha, estes são cozinheiros experimentados, habituados a queimar-se e a pôr as mãos no fogo”.
A história desse cozinhado envolve várias peripécias e porque o resultado pode matar mais do que a fome é um prato que não recomendo a principiantes. Comecemos pelo sabor... Apesar de ter hoje na memória um sabor estranhamente alegre é um prato que não desejo repetir e que só se come uma vez e inadvertidamente. Pode-se dizer que a posteriori tem um sabor mais ou menos como a lembrança de em miúdo comermos formigas no doce. Não era agradável o sabor, mas hoje, mais tarde, no sofá, a lembrança sabe a sobremesa e um sorriso aflora-nos aos lábios como a um velhinho que se lembra das suas perigosas tropelias de rapazinho.
Lá para a Primavera de 2002 eu e o Francisco tínhamos ido à Baía Estreita ali para os lados do Cabo da Roca. É um recanto de contrabandistas, apertado entre penhascos e encostas íngremes, com mantos de chorões, aqui e ali, a escorregar desde lá de cima até ao mar. Ora esta baía tem uma particularidade (e este é o primeiro ingrediente da receita), o seu único acesso a pé é por um canal que só se passa na maré baixa, o que faz daquelas vias um verdadeiro tesouro guardado num covil de piratas. E os piratas ainda lá estão, invisíveis e a rir, vendo a maré subir e fazendo apostas, de quem fica p’ra quem e partilhando antecipadamente entre si as nossas magras riquezas. É um belo ambiente de crianças. Cheira a sal e a aventura. Apetece procurar baús nos buracos das rochas!
Começámos por nos divertir à grande, ou seja, por fazer aquilo a que alguns escaladores chamam aquecer e perder tempo. Mas nós ganhámos o nosso a adivinhar as linhas daqueles penhascos e não tardámos em descobrir muitos traços roxos que serpenteavam blocos e coloriam fissuras. Era óbvio que esse pirata bem vivo tinha passado por ali! Praguejámos alegremente:
....- Com mil Demónios! Os sete mares de pedra são pequenos de mais para o Barba Roxa. Não há recanto onde não tenha deitado a âncora!
Mas depressa nos virámos para outra linha, antiga, nunca feita e de sabor desconhecido. Uma prancha lisa contra o azul do céu e sobre o verde do mar, deixada ali pelo Paulo Gorjão para quem quisesse vir provar a sua culinária muito própria. E calhou ao Francisco ser o primeiro a caminhar sobre a prancha. Lá foi ele e mesmo por baixo estava eu. Uma chapa, duas chapas, um passo duro, uma lolote gigante numa barbatana de granito e... sai o passo? Não, salta a barbatana! E vem a voar p’ra cima de mim como se fosse a tampa de uma campa com as iniciais R.I.P.! Pumba! Em cheio no dedo grande do pé! Porra! Que até hoje me dói só de me lembrar! Dez minutos a arrefecer, a respirar à cão e pronto, está feito o diagnóstico: acabou-se o dia de escalada (primeiro as coisas importantes) e consigo andar pousando o calcanhar. Está visto, vamos embora.
....- Mas eh lá! Que é isto? Estás a ouvir?
....- Sim, vem ali do canal, parece alguém a rir...
Fomos ver e percebemos logo. A maré tinha subido e estávamos encurralados pelo mar, pelos penhascos e pelas encostas de chorões.
....- Bolas, presos que nem uns patinhos!
....- E agora?
....- Hum... Esta encosta parece fácil...
....- Sim...Parece.
....- OK, ‘bora.
(Mal sabíamos nós que agora é que vinha o prato principal). Os primeiros 30 metros deixaram-nos contentes com a decisão tomada (“Que espertos que nós somos! Que bela ideia atalhar pela encosta!”). Os segundos 30 metros fizeram-nos subir bem caladinhos e concentrados (“Hum... Este pé aguenta? E agora? Por aqui ou por ali?”). Nos dez metros seguintes começámos a dizer umas asneiras e a perceber que tínhamos saltado do tacho para o fogo (“Bonito! Que atrasados mentais! E agora!?”). Alguns passos que fizemos em erva-tracção e terra-dedo-pitonagem já não nos animavam a destrepar. Parámos num pequeno socalco para fazer o ponto da situação. Oitenta metros lá em baixo, as rochas e o mar, nos 5 m seguintes uma encosta quase vertical de chorões... Até o nome é irónico.
(Interlúdio para respirar)
Quando eu era pequeno passava férias no campo e a minha tia às vezes mandava-me à horta (não era à fava era mesmo à horta). Quem é que já apanhou cenouras? Pois eu sabia bem o que isso era. É um jogo, mas não julguem que é fácil! Exige uma intuição campestre e uma técnica bem apurada. Há que saber escolher as mais grossas, agarrar com cuidado a rama e ir traccionando para ver se ela sai. Se se parte a rama está tudo lixado e é preciso escavar a terra para a desenterrar.
Eu olhei para os chorões e lembrei-me da horta da minha tia. Tinha ali à minha frente umas dezenas de ramas e era aconselhável escolher as melhores para agarrar. Se se partisse uma rama podia ser uma maçada. (Entretanto também me veio à memória uma vez que estava a fazer uma via à vista em Mongrony e estava tão à rasca que agarrei um punhado de ervas que saíam de uma fissura. Agarrei-as à mão-cheia como se fossem um rabo-de-cavalo, mas arranquei-as de repente e caí de cabeça para baixo). Por esta altura a adrenalina tinha anestesiado completamente o meu pé e eu nem pensava nele e usava-o como se tivesse crampons, espetando-o entre os chorões ao pontapé. O Francisco que tinha os dois pés sãos que nem uma alface, e que desconfio que também passou uma infância a ir às hortas, passou aquele crux primeiro. Para enganar os chorões, fez-se de camaleão e passou em câmara lenta. Depois, um pouco acima, encostou-se aos chorões, passou a corda em volta da cintura e atirou-me a ponta.
....- Podes vir!...
....- Ah bom, assim está bem...
E pronto! Foi assim que sem percebermos nada de escalada mas alguma coisa de horta, nos safámos daquela via e aprendemos uma receita nova.
Receita da “Directa dos chorões”
A história desse cozinhado envolve várias peripécias e porque o resultado pode matar mais do que a fome é um prato que não recomendo a principiantes. Comecemos pelo sabor... Apesar de ter hoje na memória um sabor estranhamente alegre é um prato que não desejo repetir e que só se come uma vez e inadvertidamente. Pode-se dizer que a posteriori tem um sabor mais ou menos como a lembrança de em miúdo comermos formigas no doce. Não era agradável o sabor, mas hoje, mais tarde, no sofá, a lembrança sabe a sobremesa e um sorriso aflora-nos aos lábios como a um velhinho que se lembra das suas perigosas tropelias de rapazinho.
Lá para a Primavera de 2002 eu e o Francisco tínhamos ido à Baía Estreita ali para os lados do Cabo da Roca. É um recanto de contrabandistas, apertado entre penhascos e encostas íngremes, com mantos de chorões, aqui e ali, a escorregar desde lá de cima até ao mar. Ora esta baía tem uma particularidade (e este é o primeiro ingrediente da receita), o seu único acesso a pé é por um canal que só se passa na maré baixa, o que faz daquelas vias um verdadeiro tesouro guardado num covil de piratas. E os piratas ainda lá estão, invisíveis e a rir, vendo a maré subir e fazendo apostas, de quem fica p’ra quem e partilhando antecipadamente entre si as nossas magras riquezas. É um belo ambiente de crianças. Cheira a sal e a aventura. Apetece procurar baús nos buracos das rochas!
Começámos por nos divertir à grande, ou seja, por fazer aquilo a que alguns escaladores chamam aquecer e perder tempo. Mas nós ganhámos o nosso a adivinhar as linhas daqueles penhascos e não tardámos em descobrir muitos traços roxos que serpenteavam blocos e coloriam fissuras. Era óbvio que esse pirata bem vivo tinha passado por ali! Praguejámos alegremente:
....- Com mil Demónios! Os sete mares de pedra são pequenos de mais para o Barba Roxa. Não há recanto onde não tenha deitado a âncora!
Mas depressa nos virámos para outra linha, antiga, nunca feita e de sabor desconhecido. Uma prancha lisa contra o azul do céu e sobre o verde do mar, deixada ali pelo Paulo Gorjão para quem quisesse vir provar a sua culinária muito própria. E calhou ao Francisco ser o primeiro a caminhar sobre a prancha. Lá foi ele e mesmo por baixo estava eu. Uma chapa, duas chapas, um passo duro, uma lolote gigante numa barbatana de granito e... sai o passo? Não, salta a barbatana! E vem a voar p’ra cima de mim como se fosse a tampa de uma campa com as iniciais R.I.P.! Pumba! Em cheio no dedo grande do pé! Porra! Que até hoje me dói só de me lembrar! Dez minutos a arrefecer, a respirar à cão e pronto, está feito o diagnóstico: acabou-se o dia de escalada (primeiro as coisas importantes) e consigo andar pousando o calcanhar. Está visto, vamos embora.
....- Mas eh lá! Que é isto? Estás a ouvir?
....- Sim, vem ali do canal, parece alguém a rir...
Fomos ver e percebemos logo. A maré tinha subido e estávamos encurralados pelo mar, pelos penhascos e pelas encostas de chorões.
....- Bolas, presos que nem uns patinhos!
....- E agora?
....- Hum... Esta encosta parece fácil...
....- Sim...Parece.
....- OK, ‘bora.
(Mal sabíamos nós que agora é que vinha o prato principal). Os primeiros 30 metros deixaram-nos contentes com a decisão tomada (“Que espertos que nós somos! Que bela ideia atalhar pela encosta!”). Os segundos 30 metros fizeram-nos subir bem caladinhos e concentrados (“Hum... Este pé aguenta? E agora? Por aqui ou por ali?”). Nos dez metros seguintes começámos a dizer umas asneiras e a perceber que tínhamos saltado do tacho para o fogo (“Bonito! Que atrasados mentais! E agora!?”). Alguns passos que fizemos em erva-tracção e terra-dedo-pitonagem já não nos animavam a destrepar. Parámos num pequeno socalco para fazer o ponto da situação. Oitenta metros lá em baixo, as rochas e o mar, nos 5 m seguintes uma encosta quase vertical de chorões... Até o nome é irónico.
(Interlúdio para respirar)
Quando eu era pequeno passava férias no campo e a minha tia às vezes mandava-me à horta (não era à fava era mesmo à horta). Quem é que já apanhou cenouras? Pois eu sabia bem o que isso era. É um jogo, mas não julguem que é fácil! Exige uma intuição campestre e uma técnica bem apurada. Há que saber escolher as mais grossas, agarrar com cuidado a rama e ir traccionando para ver se ela sai. Se se parte a rama está tudo lixado e é preciso escavar a terra para a desenterrar.
Eu olhei para os chorões e lembrei-me da horta da minha tia. Tinha ali à minha frente umas dezenas de ramas e era aconselhável escolher as melhores para agarrar. Se se partisse uma rama podia ser uma maçada. (Entretanto também me veio à memória uma vez que estava a fazer uma via à vista em Mongrony e estava tão à rasca que agarrei um punhado de ervas que saíam de uma fissura. Agarrei-as à mão-cheia como se fossem um rabo-de-cavalo, mas arranquei-as de repente e caí de cabeça para baixo). Por esta altura a adrenalina tinha anestesiado completamente o meu pé e eu nem pensava nele e usava-o como se tivesse crampons, espetando-o entre os chorões ao pontapé. O Francisco que tinha os dois pés sãos que nem uma alface, e que desconfio que também passou uma infância a ir às hortas, passou aquele crux primeiro. Para enganar os chorões, fez-se de camaleão e passou em câmara lenta. Depois, um pouco acima, encostou-se aos chorões, passou a corda em volta da cintura e atirou-me a ponta.
....- Podes vir!...
....- Ah bom, assim está bem...
E pronto! Foi assim que sem percebermos nada de escalada mas alguma coisa de horta, nos safámos daquela via e aprendemos uma receita nova.
Receita da “Directa dos chorões”
Ingredientes:
- panela de alta pressão
- 3 mãos-cheias de chorões
- terra mole sem pedra dura
- corda para enfeitar o prato
- uma pitada generosa de adrenalina
Preparação:
1ª parte – Deixar a água subir até à borda e fechar a tampa. Dar três bordoadas num pé de porco com o rolo da massa. Saltar um minuto em pé-coxinho com a panela e aos gritos. Deixar alourar o pé até estar bem inchado.
2ª parte – Quando a pressão estiver bem alta, juntar os chorões colhidos numa encosta bem íngreme (os mais altos são sempre os mais saborosos). Adicionar adrenalina até a cor mudar de verde para branco. Enfeitar a refeição com uma corda à volta da cintura. Servir bem frio e comer muito devagar sem tremer as mãos ou os pés.
12 comentários:
Ah, ah, ah! (gargalhada estridente).
Ainda me recordo quando vocês me contaram a história dessa "abertura"... e eu a pensar que era maluco!!
Falando de loucuras, deixo aqui uma sugestão ao Ataíde: "A primeira repetição (em solitário)do terceiro largo da Cuba Livre, no Espinhaço, aberta pelo Ricardo Nogueira em 98.
... e uma garrafa de rum!...
Paulo Roxo
muito boa a historia ate abriu o apetite!
Esta aventura deriva daquele espírito chamado “é na boa” que muitos de nós já experimentamos!
O problema é que normalmente é mais difícil descer que subir e quando nos arrependemos voltar atrás já não é solução!
Quem lê o texto fica a pensar que não há mais nenhuma hipótese de saída da baía estreita! Mas há! Os cozinheiros estavam mesmo embebidos do espírito “é na boa”!!!
Uf...Uf...Uf!!! Ainda bem que os meus dotes culinários são uma lástima...mesmo para as receitas mais fáceis me falta atrevimento, quanto mais para esta picantissima receita!
Bolas! Lacrimejei-me todo a ler esta história!
Apesar de sentir alguma afinidade com o nome da receita, achei que tinha um pouco de leguminosas a mais para o meu gosto.
hehe
fartei-me de rir :)
Mas é receita que passo de bom grado.
Madre mia, axo q perdi a fome!! O q vale é q a escalada tuga está recheada de grandes chefes d cozinha e os nossos pratos são sempre conhecidos internacionalmente..
Fantástica história!!
Excelente relato e alucinante escalada!!!
Quem tem a arte de cozinhar também sabe apreciar um bom prato! ;)
Chorão a chorão, para ali é que não vou não!! Grandes cromos...
Qual era mesmo o doce com que misturavas as formigas?
História muito bem contada.
Não deves nada ao melhores jefes...ou melhor dito: artimanhas de Olivier!
Cuca
olivier nao sabe nada perto destes artitas do coirato e do chispo!!!
e se o Olivier é quem é neste momento tambem o deve a uma pitada de rocha!!!!!
xau xau
Viva Macau! Comer as formigas não era intencional. O que acontecia era os doces ficarem de um ano para o outro e haver ocasionalmente ataques de formigas aos armários (não sei porquê parece que antigamente havia mais formigas nas cozinhas). Eram sobretudo doce de figo e de tomate. O de figo era tão bom lá em casa que mesmo com formigas marchava muito bem. Era uma questão de ter sorte e não merder as formigas... Quem já mordeu sabe bem porquê.
Enviar um comentário