terça-feira, outubro 31, 2006

Quando o escalador se transforma na montanha

Apesar do título, o que vou escrever não tem quase nada a ver com escalada. Digo isto para que os fanáticos possam desistir já de continuar a ler. Bom, feito o aviso, só perde mais tempo quem quiser. Na verdade, o que vem a seguir tem muito mais a ver com o sexo dos anjos, com um desafio e uma aventura ou com uma crónica de um nascimento anunciado.

Vou falar de crianças. Não desses mutantes que fazem 8c aos 10 anos e que deixaram de ser crianças a partir do exacto momento em que ficaram obcecados com a escalada. Desses, tenho pena, sinceramente. Porque ainda na idade de serem crianças já não o são. Porque não há crianças fanáticas, mas adolescentes sim. E a adolescência já é uma inocência perdida, já não tem aquela graça, aqueles sorrisos de alma que nos desarmam. A adolescência é antes um tempo onde começa a despontar um aflito egozinho ávido de reinar. Na adolescência já estamos quase* a falar de pessoas, são rapazes ou raparigas e o género tem um peso fundamental que já os define e distingue. A partir daí carregam para sempre esse género e esse ego cada vez maior e mais exigente. Mas as crianças não. Nelas, o género não tem peso nenhum. São crianças apenas. O género não as define ainda, são quase assexuadas! Como os anjos. Daí uma pureza e uma inocência que mais parecem ser do céu do que da terra. Ter crianças em casa é ter um paraíso em miniatura na sala de estar (um paraíso aos gritos, mas um paraíso). Não é fácil perceber que é um paraíso quando lá se está no meio, pois parece antes uma selva, mas mal nos afastamos e olhamos de uma certa distância, logo o sentimos. As crianças amam-nos (e por vezes temem-nos) como a um deus. E não é coisa pequena esta de se ser tomado por um deus, temos que fazer milagres todos os dias. Coisas simples, como colar bonecos partidos, consertar triciclos ou consolar tristezas inconsoláveis como ter perdido um pião. Coisas simples, mas que têm o efeito de milagres naqueles pequenos (mas proporcionalmente enormes) corações. Sim, somos deuses daquele mundo ainda pequenino e uma das maiores tristezas da vida é deixarmos de acreditar. (Porque não acreditar em Deus é como ser órfão do céu e ser filho de si próprio. É uma grande tristeza. Não se morre por isso, mas é uma grande tristeza).

E somos também a montanha desse lugar que é a infância e as crianças sobem por nós acima (literalmente). É em nós, uma montanha, que nasce de manhã o sol delas e é em nós que à noite se põe o sol delas. Ser uma montanha é uma grande responsabilidade, mas é também uma grande aventura e um grande desafio, como só as montanhas oferecem. Somos uma montanha e assim temos de permanecer por mais tempestades que o mundo traga. E compreendido isto, compreendemos que o escalador se transformou na montanha.


* e este “quase” não é uma desconsideração... a sério! Reflecte apenas o facto de não se ser ainda completo, de se estar à procura, de uma incerteza e de uma busca de afirmação, que não deixa de ser uma fraqueza.

16 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem! Uma vez mais seca-me a boca ao ler e compreender (ou pelo menos tentar) tão sábias palavras em tão genial conjugação.

Os meus mais sinceros parabens, Filipe.

Anónimo disse...

Ops...esqueci-me de assinar o comment acima!!

Miguel Grillo

Anónimo disse...

()
"Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente."
SMart

FCS disse...

Obrigado Miguel pelas amáveis palavras e obrigado Smart pelas palavras do meu sempre “Mestre”.

“... que é feito de ti nesta forma de vida?
...
Na angústia sensacionalista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser”

Anónimo disse...

Em vesperas de ser pai pela primeira vez confesso que este texto me fez refletir na pureza de tal relação e espero estar sempre à altura, tentando diáriamente ser uma óptima "montanha" para os meus filhos escalarem e se educarem.
Ricardo

Isabel disse...

Pelo que conheço dos teus dois filhotes, tens sido uma montanha do tamanho do Evereste!
Belíssimo texto.
Isabel

FCS disse...

Ao Ricardo os meus parabéns! Apesar de os filhos nos verem como uma montanha, um sol e um deus, é muito simples ser pai... Basta ter um coração e ouvi-lo.
Obrigado Isabel. Tenho a sorte de ter ainda uma montanha maior do que eu lá em casa...

Rui disse...

acho que a sorte não e tua mas sim dos teus miudos por terem estas montanhas em casa...
e os meus parabens ao ricardo, agora tb tens de pensar na maneira de te tornares numa gigantesca montanha

xau xau

Anónimo disse...

Epah lá em casa voces não são uma familia, mas sim uma cordelheira!!

Parabens aos dois

Zé Maria disse...

Só quem os tem compreende verdadeiramente o alcance do que dizes aqui. Costumo dizer que a humanidade se divide em duas partes, a dos que têm filhos e a dos que não têm.

Scott disse...

Filipe,
Gostei imenso do texto. Como pai de três meninas, espero ser a montanha que precisam. Mas acho que tenho de crescer muito...

Scott

Anónimo disse...

O melhor texto que já li na internet.

Paulo Roxo

Anónimo disse...

Belo texto, cheio de sentido e sentimento!

Parabéns!!

Macau

Liliana Lima disse...

Obrigada por me recordares que a "selva" barulhenta não deixa nunca de ser o paraíso (como dizes é preciso ganhar alguma distância para o perceber, mas depois torna-se claro).

Gostei, voltarei mais vezes para espreitar...

A prima ;)

FCS disse...

Caríssima "prima",
parabéns pelo 3º Baptistinha!
E venham mais cinco.
bjs

Salvador disse...

Não axei nada uma perda de tempo, axei sim genial!